Nada Vejo
Recordo-me da sensação de estar viva,
de ter o chão sob meus pés,
da consciência entre meus dedos
e da felicidade sempre presente nas fibras agora inexistentes
do meu coração.
E era feliz!
Ah! Quão feliz era!
A felicidade me sobrevinha tão facilmente
que é difícil acreditar que isso foi em uma época distante.
Tão distante quanto a própria existência... e não sei o
motivo.
Também não sei porque, não lembro, mas ainda vivo.
Vejo tudo o que tinha morto – sonhos, desejos, esperanças,
crenças, anseios, vontades, beatitudes...
Um por um se foram...
O carmim manchando o solo,
as roupas velhas e sujas,
as lágrimas dolorosas e dilacerantes,
que nunca foram o suficiente...
Toda a dor do fatídico momento,
toda o solidão do auto-confinamento,
todo o desespero sufocado que guardei calada,
todo o vazio que só aumentava.
Mas cansei de chorar,
cansei de rever todas as suas mortes.
A apatia aplacou a dor e a mágoa.
Superabundou vazio e solidão. Mas eu deixei!
Não havia caminho para escolher.
Era tanto cansaço que minha vida parou,
minha existência estagnou
mas o tempo nunca parou...
Apesar de tudo, surpreendo-me com o parco prazer que sinto
com os batimentos de meu coração,
sempre constante,
sempre rindo-se,
sempre debilitado.
Com o passar dos anos, a vida cessa para alguns,
já desejei trocar de lugar com eles,
mas a minha existência continua.
A pena não cessa.
Solidão é um pouco do que me resta.
Não há paz,
nem futuro no qual me apegar.
Não entendo...
Por que continuo vivendo?
Ainda sentindo o sangue feito correnteza a correr pelas
veias, por quê?
Pra que sentir toda essa dor?
Por que a ausência de ar não faz a sua parte no ciclo da
minha vida?
Solidão... Quantas vezes já me deparei com ela?
Quantas ainda vou ter de me deparar?
Não é como se essa dor, esse sofrimento, essa sensação de
vazio e inutilidade fossem novidades.
O problema é que é sempre nesses momentos,
quando a solidão ataca em sua mais angustiante e terrível
forma,
que os anos evaporam-se e eu nada vejo.